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Marcello Jr/Arquivo da Agência Brasil |
“Ele costumava fazer coisas para me amedrontar, pegava facão, me
chutava, era soco, pontapé, tinha um machado também, que ele queria jogar na
minha cabeça”, revela Cássia**, hoje com 37 anos, sobre a última cena de
agressão protagonizada pelo ex-marido, com quem se casou aos 17. Ele era dez
anos mais velho e essa era a desculpa para que Cássia recebesse “lições”, entre
elas ameaças de morte com um revólver na cabeça.
A violência física começou dois
meses após o casamento. “Eu fiquei [em casa] porque ele me pediu desculpa,
éramos recém-casados, ele ficou chorando, falou que nunca mais ia acontecer”,
relata. Depois da primeira, vieram muitas, justificadas pelo ciúme. Ela
acreditava que era uma forma de proteção por parte do marido.
O último episódio de violência
ocorreu no dia do aniversário de Cássia, em 2012. Ela nunca havia procurado uma
delegacia para denunciar, mas, nesse dia, sua vizinha de 12 anos ouviu os
gritos e chamou a polícia. Levada para uma delegacia comum, ela conta que, ao
dizer que estava com medo, o delegado minimizou o problema, disse que não
poderia ajudar e que ela deveria fazer o que quisesse.
“Eu falei que tinha muito medo
do meu marido, tinha medo de ele me matar. O delegado disse: 'ele vai te matar
de qualquer jeito, ou preso ou fora da cadeia'”.
Reclamações de mulheres sobre o
atendimento prestado em delegacias de polícia comuns, onde geralmente eram
ouvidas por homens, motivaram a criação da primeira Delegacia de Defesa da
Mulher, há 30 anos, em São Paulo.
Secretário de Segurança Pública
do estado à época, o vice-presidente, Michel Temer, conta que recebeu um grupo
de mulheres que criticava a forma como eram tratadas nas delegacias. “Quando
iam reclamar de agressão de companheiro ou de violência sexual, recebiam
tratamento inadequado, do tipo 'quem sabe a culpa é sua'”, relembra Temer.
Foi a partir desse encontro que
a Secretaria de Segurança Pública resolveu criar a Delegacia de Defesa da
Mulher, no centro da capital paulista. A ideia, explica Temer, era que a
delegacia fosse integrada “por uma delegada, algumas escrivãs e muitas
investigadoras para atender à mulher agredida nos seus direitos mais
elementares”.
A finalidade da delegacia era
receber vítimas de violências físicas e sexuais cometidas por desconhecidos,
com o intuito de dar um atendimento mais humanizado e acolhedor. A equipe de
trabalho, entretanto, foi surpreendida por uma forte demanda: mulheres
agredidas pelos próprios companheiros, como o caso de Cássia.
Pioneirismo
Primeira delegada especial para
mulheres, Rosmary Corrêa conta que o equipamento foi a primeira política
pública direcionada a vítimas de violência no Brasil. “A ideia era oferecer um
espaço diferenciado para a mulher, que seria atendida por outras mulheres, para
que ela ficasse mais à vontade para falar a respeito desse assunto”, lembra.
Hoje, existem nove delegacias da mulher somente na capital paulista e 130 em
todo o estado.
A partir da criação da
delegacia, o governo passou a ter ciência e a enxergar a violência sofrida
pelas mulheres, tanto agressões físicas quanto discriminações e ofensas. Para
atendê-las integralmente, criou-se um setor de assistência social, dentro da
própria delegacia, além de um abrigo para mulheres que não podiam voltar para
casa por medo de serem mortas pelo marido. “Tudo começou a aparecer depois que
se mostrou a realidade que muitas mulheres viviam dentro de casa”, afirma
Rosmary.
Para ela, uma das conquistas da
delegacia foi mostrar que a violência doméstica não era normal e que havia
possibilidade de denúncia. “Tínhamos que mostrar para o agressor que bater na
mulher, mesmo que fosse a mulher dele, era crime e como crime seria tratado”.
Gislaine Doraide Ribeiro Pato,
que também foi delegada da mulher no estado e hoje trabalha na coordenação de
todas as delegacias, destaca que, na época, a violência doméstica era
invisível, ocorria entre quatro paredes e não havia nem abertura nem impulso
para que as denúncias viessem à tona. “Foi a primeira política pública
desenvolvida em prol da mulher. Foi um avanço, um marco, uma ação que
resplandeceu”, destacou.
Gislaine explica que vários
fatores impedem a mulher de denunciar o companheiro agressor. Há o receio de
desaprovação da família em casos de divórcio e de perder a guarda dos filhos.
Também há a fragilidade emocional e a dependência financeira, além de
situações de ameaça. “São fatores que ainda preponderam para que a mulher não
consiga sair dessas amarras, quebrar tudo que faz com que ela continue sendo
vítima”, analisa.
A tradição familiar foi o
principal entrave, no caso de Cássia. “Meu pai não queria que eu me separasse,
então tinha que ficar”, relembra. Ela conta que, nos episódios de violência, o
próprio marido chamava a família dela para uma conversa e dizia que a
companheira havia feito “coisas erradas” e, por isso, tinha apanhado. “Meu pai
colocava a culpa em mim toda vez e passava a mão na cabeça dele”, relata.
Somente aos 34 anos, após 17
anos de casamento, ela conseguiu se libertar do ciclo de violência que vivia.
“Eu não conseguia ver solução.
Comecei a ter vontade de fazer alguma coisa porque um mês antes tinham morrido
duas mulheres por conta de agressão e eu chorei muito. Eu lembro, porque eu
falei assim: 'Já pensou, meus filhos estarão na televisão, falando isso de mim,
quem vai cuidar deles? O pai vai estar na cadeia e eu, morta'”.
Com a ajuda de um amigo e de um advogado, ela conseguiu que o ex-marido saísse
de casa. Uma medida cautelar, que vigora até hoje, obriga que ele fique a, pelo
menos, 500 metros de Cássia e da casa em que ela vive com os três filhos.
Desafios
Para o vice-presidente, Michel
Temer, houve grandes avanços no combate à violência contra a mulher nos últimos
30 anos. Ele cita como exemplos a Lei Maria da Penha (2006), que cria
mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica, e a Casa da Mulher
Brasileira, que reúne em um mesmo espaço serviços de assistência às mulheres
vítimas de violência, como delegacia, juizado, Defensoria Pública e apoio
psicossocial.
Ele reconhece, no entanto, que
há ainda desafios para mudar o quadro de violência contra a mulher. “Há
deficiências? Claro que há. Mas elas vão sendo combatidas com muito mais
velocidade do que eram há 30, 40 anos. É uma evolução constante.”
Delegada da mulher desde 1994,
Gislaine destaca os desafios a serem enfrentados. “Precisamos amparar e tentar
fortalecer essas mulheres que estão fragilizadas. Eu acredito que existam leis
muito boas, como a Lei Maria da Penha, previsão constitucional de que todo
mundo é igual, só que na prática precisamos ainda concretizar essa igualdade e
estamos caminhando para isso”, diz.
Para a coordenadora do Núcleo
de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública de SP, Ana
Paula Lewin, a Lei Maria da Penha, que completa nove anos na próxima sexta-feira
(7), já é uma realidade. “É uma lei que hoje tem aplicabilidade. Enfrentamos
ainda muitas barreiras, temos muita dificuldade, o atendimento ainda não é o
melhor, mas jamais podemos deixar de reconhecer que esse é um instrumento que
realmente funciona e que incentiva, inclusive, as mulheres a buscarem ajuda”,
declarou.
Para Ana Paula, as medidas de
proteção de urgência, estabelecidas na lei, são ferramentas importantes no
enfrentamento imediato à violência doméstica. As medidas incluem proteção
policial, encaminhamento ao hospital e acompanhamento para a retirada dos
pertences pessoais da casa que dividia com o companheiro. “Não precisamos nem
discutir se a mulher vai tomar providências depois, se o processo-crime vai
continuar, mas é uma medida para já encerrar o ciclo da violência e para a
mulher conseguir se libertar da violência”, disse.
Estatísticas
A cada duas horas, uma
brasileira é morta em situação violenta. Uma em cada cinco mulheres afirma ter
sofrido algum tipo de agressão por parte de um homem. Os dados fazem parte do
Dossiê Violência contra as Mulheres, plataforma multimídia online lançada ontem
(5) pelo Instituto Patrícia Galvão.
Na capital paulista, onde
Cássia sofreu agressão, os registros de violência contra a mulher aumentaram
10,4% em junho deste ano na comparação com o mesmo mês do ano passado,
com 1.779 boletins de ocorrência. No estado de São Paulo houve queda
de 8% no registro de boletins de ocorrência no mesmo período. Em junho de 2014
foram 10.585 registros e em 2015, 9.742.
Na capital, as denúncias mais
expressivas, em junho deste ano, dizem respeito a casos de ameaça (759
registros) e lesão corporal dolosa (716). Já no estado, foram registrados 4.614
e 3.752 denúncias desse tipo, respectivamente. Juntos, os dois crimes são
responsáveis por 83% dos boletins de ocorrência na capital paulista. No estado,
essa proporção é ainda maior e chega a 85,9%.
** Nome
fictício a pedido da entrevistada
Informações com Agência Brasil
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